Profere-se, vez por outra, que os alunos de hoje não tem capacidade de interpretação e que isto é consequência da falta de leitura. O procedimento padrão de muitos professores de língua portuguesa consiste em escolher um texto (em geral, de autores consagrados), lê-lo e passar um questionário. A justificativa para este procedimento padrão é que se está, com isto, verificando a capacidade do aluno de “interpretar” o texto.
Mas o que é interpretar um texto? Tecnicamente, interpretar é a primeira fase de um projeto de compreensão da obra. Seguem-se a análise e, por fim, a crítica. No sentido escolar, a interpretação seria a “tradução” para uma forma sígnica acessível ao aluno.
Muitos professores acreditam possuir a chave hermenêutica que lhes permitiria “decodificar” o “sentido” de um texto. Esta parece ser a tônica de seu fazer pedagógico. Poder-se-ia perguntar, entretanto, se isto de fato auxilia de alguma forma para o incentivo à leitura, para o ato de ler sem compromisso.
Constata-se, de imediato, que: professores não possuem qualquer gabarito particular para afirmar que sua interpretação seja melhor que a de seus alunos. Simplesmente porque a escritura enseja semiose infinita, ou seja, não é possível afirmar que uma dada leitura seja efetivamente melhor que outra porque o significante gera uma quantidade infinita de significados.
Na realidade, quando se depara com uma interpretação “estranha”, depara-se com uma dissonância entre horizontes de expectativas. Este horizonte de expectativas é um referente do signo, na famosa formulação triádica de Peirce. Uma determinada comunidade, dentro de uma perspectiva histórica, em seu sentido superestrutural, é uma representação integrante, ou seja, determinador de um horizonte de expectativas. Isto leva à conclusão de que a interpretação é sempre relacional.
Dado esse processo, não se pode desconsiderar o ruído em um sistema comunicacional. Esse ruído é uma interpolação de natureza vária que interfere ou modifica dado sinal em sua trajetória rumo ao receptor. Acontece que esses “ruídos” são parte constitutiva do enunciado linguístico: contabilizando, no sistema, a dimensão temporal, têm-se, obrigatoriamente, uma diacronia imanente no processo de recepção. Nesse sentido, o tempo, embora um referente do signo, é um fator estruturante, porque não é possível esquecê-lo ou desconsiderá-lo. Um determinado “desvio” da norma pode ser tido como a norma, dependendo do momento temporal em que é lido.
A interpretação equivocada, objeto de correção do professor, é produto de uma crença escolar. Sua referência genealógica imediata é a tradição interpretativa romântica , cujos pressupostos eram anti-clássicos. A ênfase do romantismo foi o impressionismo, no sentido de que a crítica deveria ser inevitavelmente uma hermenêutica pessoal (o homem como oráculo de si mesmo).
É consternador que hoje o ensino de literatura, no que tange à competência leitora e escritora, seja tão somente centrado numa crença idealista. A compreensão desse fenômeno deve centrar-se nas suas causas, uma vez que não é a condenação moral capaz de operar qualquer mudança na metodologia de ensino.
Faz-se necessária uma ampla discussão sobre a formação do professor de língua portuguesa, tendo como ponto de partida o currículo do curso de letras. É um desserviço ao estudante o ensino de uma crença ou um conjunto delas. A literatura, como todos os demais fenômenos comunicacionais, é passível de análise objetiva, a despeito dos muitos que a proclamam inefável. É este o princípio basilar de qualquer estudo acadêmico e a escola é inescapavelmente acadêmica (o que não quer dizer que deva ser dogmática).
Em suma, a resposta à pergunta que constitui o título deste texto, é: não há cabimento na afirmação. Esta se constitui, de fato, em um clichê. Esse lugar comum nada mais é que uma justificativa para a imposição de crenças e dogmas pessoais.
Luciene Souza
22 de abril de 2013 08:06
Nenhum comentário:
Postar um comentário